terça-feira, 17 de junho de 2014

Tia Vera




No meio da madrugada chuvosa e insone, no final do ano passado, parei de escrever e resolvi abrir um email pouco usual.

Não é que uma surpresa me aguardava?!


Entre tantas mensagens impessoais novas e antigas, lá estava uma, esperando-me pacientemente, desde o meado do ano, escrita por uma pessoa que minha mente não fez o menor esforço para se recordar.

Alguém que convivi por um tempo na infância, mas que me acompanhou o resto da vida, por ter deixado uma das melhores heranças em mim. E a quem devo muito quem sou hoje. Uma pessoa que orientou carinhosamente os meus primeiros passos para o mundo das letras. 

Uma professora domiciliar, mas que na verdade era um tipo de fada, que chamava de Tia Vera.


Querido Fabinho, não sei se você ainda se lembra de mim. Você faz parte de minha história, porque sempre te amei muito, pedi a Deus que meu filho se parecesse  com você porque sempre admirei seu jeito meigo, carinhoso e querido de ser. Fabinho, você participou  da preparação para a chegada do Júlio César e depois do nascimento, ele ficava conosco sentado no bebê conforto enquanto fazíamos nossas aulas. Lembra-se quando estudávamos nas apostilas do Positivo?
Fabinho, fiquei extremamente orgulhosa de você ao ver a publicação do livro da Glória Pires, tendo-o como autor. A delicadeza, o bom gosto, o capricho, a sutilidade e outros infinitos adjetivos seriam insuficientes para qualificar seu desempenho. Sendo você a pessoa que é não foi surpresa elaborar uma obra deste gabarito.
Passei por um período difícil, mas agora estou bem e comecei me aventurar no mundo virtual.
E para você que mora em meu coração: Meu carinho, minhas saudades, meu desejo de sucesso e minha prece.
Tia Vera.

Eu já sabia ler e escrever quando nos conhecemos, por volta dos meus sete anos, mas por culpa da minha deficiência em ciências exatas, uma das professoras da minha escola recomendou para minha mãe que procurasse uma ajuda particular. Ou, como dizem aqui no Rio, uma explicadora.

Então lá ia eu, quase todos os dias, na parte da manhã, antes do horário escolar, para a casa da Tia Vera, há algumas quadras da minha, carregando minha mochila com as lições de casa.  

O trajeto em si já era uma aventura, pedalando minha Caloi Cross vermelha pelas ruas arborizadas do bairro Morangueira, em Maringá. Um trajeto simples mas que na minha cabeça virava um rali.

No seu quintal tinha um cachorro gigante da raça Rough Collie, que eu morria de medo e chamava de Lassie, por causa do seriado. E ela me atendia na sala de estudo, onde apareciam objetos mágicos dos seus armários e gavetas. Sonhava morar ali.


Quando sua ajudante doméstica a interrompia, perguntando-lhe o que serviria para o almoço, ela abria um freezer imenso, daqueles antigos, que pareciam caber uma pessoa congelada e destrinçada dentro. E procurava entre os pedaços frios de pernis, aves, costelas e outra miudezas e grandezas. Ficava fascinado com aquilo, como se ela guardasse um universo gélido por lá. 


Ao final eu regressava para casa, com os deveres devidamente feitos e pronto para almoçar, vestir o uniforme e ir estudar novamente. 

Teve até uma vez que uma professora pediu para desenharmos um mapa do Brasil à mão. E tia Vera, vendo meu desinteresse, caprichou para mim. 


Na sala mostrei à professora que me olhou com uma desconfiança suprema, acusando-me de não ter feito aquilo, alegando em alto tom que por isso não aceitaria. A turma toda me encarava com aquele deboche comum e cruel das crianças.


A imperdoável professora insistia para eu revelar quem tinha feito o desenho. Claro que não contei. Jamais quebraria o código de ética e amizade por Tia Vera. E acabei de castigo o resto da aula.


Enquanto minha mãe fazia da minha vida um inferno, o paraíso que conheci foi através daquela mulher, que posso declarar ter sido uma mãe do coração e dos cadernos.


Nossa separação se deu porque Tia Vera, que sempre sonhou ter filhos, havia finalmente engravidado e o bebê passava a requisitiá-la mais e mais. Logo também nos mudaríamos para outra residência, num local mais afastado do bairro. 


Convivi com outras ao longo da vida estudantil, devido ao meu descaso pela matemática, mas nenhuma me tratou de forma tão especial.


Agora, trinta anos depois, Tia Vera reapareceu, graças às redes sociais. 


E só hoje entendo o que tudo aquilo me significaria. O quanto Tia Vera faria parte de mim. Jamais a esqueci, principalmente pelos livros que ela me deixava levar para ler. E pelas palavras que compartilhava quando eu redigia.


Hoje Tia Vera se tornou uma história. Uma história imortal. E que é só minha. E dela também.


Quem disse que não há fadas-madrinhas?

Meu pequeno menino, foi, sem sombras de dúvidas, o meu aluno preferido. Eu sempre fui apaixonada por você. Esperava-o todos os dias cumprindo um ritual todo envolvido pela afetividade e era a melhor coisa que eu fazia na vida: ajudá-lo fazer aquelas tarefas enfadonhas comprimidas em uma apostila, pois sempre tive certeza que sua capacidade, criatividade e inteligência iam muito além do que aquele conteúdo limitadinho. Sempre pedi a Deus para ter um filho parecido com você, gostando de contestar aquilo que achava não estar correto e apaixonado pelo conhecimento. Tenho um orgulho enorme de você, meu filho amado do coração. Amor de mãe é incondicional, eterno e verdadeiro. Você entrou em minha vida para que eu pudesse me tornar uma pessoa melhor, sentir a felicidade de "ser mãe postiça" e ficar troncha de orgulho a cada sucesso seu. E te amo como uma mãe!
Tia Vera.