sexta-feira, 13 de junho de 2014

A vozinha



Sobre minha mania de questionar e avaliar as relações humanas, costumo brincar com meus amigos que eles podem ser inspiradores para escrever. E eficientes antidepressivos. 

Algumas experiências também conseguem modificar o nosso olhar sobre certas coisas, quando nos permitimos. 

Desde que conheço minha amiga Michele Vacchiano, sua avó, Maria Cardoso Rebelatto, sofria de um mal degenerativo chamado Alzheimer, que lentamente leva embora a memória de uma pessoa. Um terror que afeta milhares de idosos e cuja cura é desconhecida, incluindo o triste processo degenerativo. 

O doente vai simplesmente se esquecendo de quem são as pessoas ao seu redor. O cônjuge, os filhos, os netos, os amigos. Todos se tornam meros estranhos. E depois acaba se esquecendo de quem simplesmente é.

No caso de Mariazinha, ela havia chegado a um lamentável estágio avançado, que a deixou infantilizada, esboçando reações e pensamentos de uma criança tardia. Chora. Balbucia. Chamava pela mãe que, na verdade, é sua filha. Recentemente havia sofrido uma queda e quebrou o fêmur, sem poder mais andar, condenada a dias e noites sobre uma cama, sofisticadamente adaptada para ela, sob cuidados especiais. 

Contam que a avó foi uma dama da sociedade curitibana e carioca. Foi jovem e bonita. Sonhava se casar de noiva e assim o fez. Quis ser mãe. E teve três filhos. Virou costureira. E fabricava lindos vestidos para ela e sua filha.  Com o tempo passou a distribuir para as melhores butiques do sul. Era uma estilista. Roupas que hoje permanecem sufocadas no guarda-roupa, respirando um passado que não existe mais. Criou os filhos, foi boa esposa, fez carreira na moda, teve orgulho dos netos. Agora não lhe resta mais nada.



Mas no decorrer de sua enfermidade aconteceram situações inevitavelmente engraçadas que chegaram a tirar a seriedade da coisa, como no dia em que ela tentou acender um cigarro nas luzinhas que piscavam do pinheiro de natal, e que desabou em cima dela no meio da sala. Ou quando inventou de aquecer o café e colocou uma xícara sobre o fogão aceso, causando uma pequena explosão de porcelana na cozinha.

Suas lembranças foram partindo aos poucos, levando o seu nome, sua história, sua gente. Apenas as recordações mais antigas restaram por algum tempo, como seu casamento com o grande amor, cenas antigas com os filhos e outros episódios distantes, que ela contava como se tivessem sido ontem. Mas que agora nem isso sobrou.

Então, nos dias em que passava com minha amiga, tentava ajudá-la de alguma forma com aquela dor. E nas vezes em que ficava sozinho com sua vó, de hora em hora espionava o seu sono velado, certificando-me de que ainda respirava. Até fazia aviãozinho para motivá-la a engolir as colheradas de sopa.

No entanto, as conversas da avó é que me surpreendiam. Ela despertava papeando com alguém que ninguém mais via, só ela. E confabulava assuntos que somente ela devia entender. Parecia girar numa órbita exclusivamente dela.

Observando seu diálogo com o vazio, entre gestos curtos e caretas delicadas, começava a imaginar que espécie de mundo estaria ela vivendo. Com quem será que tanto falava? Fantasmas que um dia foram parte de sua vida? Seres imaginários que povoavamm seu quarto? E sobre o quê?

Acabava pensando que a vozinha devia discutir consigo mesma, fazendo prováveis acertos com seu passado, seja lá qual fragmento for. Ou perambulava por alguma realidade paralela, na qual não pertencemos, ignorando-nos como se não fossemos dignos de estar lá.

Hoje prefiro acreditar que ela vivia um eterno sonho, dormindo ou acordada, por todos os dias que lhe restavam, e que para ela devia ser mais real do que a nossa duvidosa realidade.