sábado, 21 de junho de 2014

Sinéad O'Connor





Era início de 1990. Eu tinha 16 anos. 

Meus pais acharam uma solução. Escolheram um internato. Colégio Adventista. Em Anápolis. Cidadezinha do planalto central que fica entre Goiânia e Brasília. 

Eu morava em Maringá, no Paraná. Lugares bem distantes. Mas ainda é assim que algumas famílias tentam se livrar dos filhos indesejados.

Fui escoltado por José Fabretti na viagem que durou praticamente dois dias, rodando de ônibus do sul ao centro oeste, levando comigo duas malas gigantes e bem gordas. Uma com todas as minhas roupas e outra cheia de livros. Porque o plano deles era não me terem de volta tão cedo. E o meu nem era voltar mais. 

Eles queriam se livrar do problema. E o problema em questão já estava comemorando ser livre eles.  

Há um tempo, quando eu tinha completado 10 anos, minha mãe me perguntou o que queria ganhar de aniversário. E respondi todo feliz que queria morar num orfanato. Levei um tapa na cara. Foi inadmissível para ela. Mas era sonhador para mim. 

O pior é que não estava só influenciado por um filme que adorava, sobre uma órfã chamada Elizabeth, que vivia escrevendo diários e cartas para os pais que não existiam. Eu desde cedo realmente preferia não ser filho deles.


O internato, ao menos na época, era um oásis ilusório no deserto, situado numa estrada no meio do nada, na rota de Planaltina, com uma construção sem graça nenhuma e bem diferente do bucólico orfanato da Elizabeth. 

Logo que chegamos vi uma carroceria trazendo alunos sujos de terra e sem camisa. Porque os internos que não eram pagantes estudavam até certo período e trabalhavam na lavoura. Os pagantes estudavam e rezavam com mais mordomias.

O regimento do colégio era vegetariano e portanto comiam o que plantavam. Ou só plantavam o que comiam. Nunca sobreviveria sem minhas proteínas sangrentas.

Levaram-me para conhecer a instalação que se dividia em alas femininas e masculinas, contendo quartos que pareciam celas. As beliches de alvenaria, onde se dormia sobre colchões magros e sem lençóis. Os armários não tinham chaves e as paredes tinham aquelas mesmas manchas enigmáticas dos motéis. 

Usavam um banheiro comunitário que não possuía privacidade nenhuma e com vazamentos que deixavam pequenos lagos e córregos no chão de ladrilhos. E se não me engano nem tinha água quente.

Se fosse para viver sob aquelas condições, pensei, talvez valesse mais a pena servir o exército em breve, o que ao menos me daria alguma dignidade civil.

Falei, pedi e supliquei ao meu pai que não me deixasse lá. Mas ele respondeu que havia gastado muito com aquilo e que seria bom pra mim. E me deixou.

Naquela mesma noite fiz amizade com outro 'estudante-prisioneiro' que também havia acabado de chegar e que se achava tão injuriado quanto. E tramamos uma fuga. Ele sabia de algumas falhas na segurança, como as cercas de arame farpado não serem controladas - quase ninguém usava câmeras - e porque estávamos no meio de uma rodovia, sem muitas opções de se esconder. 

Mesmo assim lá fomos, jovens foragidos, arrastando as malas e mergulhando no matagal, noite adentro, depois que todas as luzes do prédio se apagaram. 

Jogamos nossas bagagens do outro lado da cerca e um ajudou o outro a atravessá-la. Foi aí que fiz um corte no dedo e cuja cicatriz carrego até hoje. O sangue se esvaía sem parar e inutilizava uma das minhas mãos, o que me obrigou a abandonar uma das malas. Não tive dúvidas: deixe a das roupas e levei a dos livros, mesmo sendo mais pesada. Teria mais serventia para mim.

Estávamos sozinhos naquele breu iluminado pelas pelas rajadas dos altos faróis dos caminhões, que passavam em disparada, e o silêncio quebrado pelos seus motores velozes, que poderiam esmagar com suas rodas qualquer ser noturno que atravessasse o caminho. 

Eu rezava para não sentirem a nossa falta na 'instituição penal-estudantil' e nos 'capturarem'. O parceiro parecia mais confiante. Então soube que ele era um fugitivo veterano por lá.

O destino do meu companheiro era um. O meu podia ser qualquer um. Ele voltaria para o seu lar. Eu poderia escolher para aonde quisesse ir, já que estava a milhares de quilômetros de casa.

Depois que meu comparsa partiu na boleia de uma jamanta que seguia para Brasília, permaneci mais um tempo até que um pequeno carro rural me deu carona para Goiânia. Menti que era um estudante de férias.

Fiquei na rodoviária, minha única referência para quem não tinha destino. Afinal é lá que as pessoas vão ou voltam de algum lugar. 

Devido a menoridade não podia fazer muita coisa, nem ir muito longe, então resolvi ligar para casa e comunicar o meus pais, avisando que nem adiantavam acionar o colégio, porque eu fugiria de novo. 

Nos dois dias em que fiquei esperando meu pai me buscar, dormi entre os bancos de espera dos embarques. E lia muito para esquecer a fome. Por sorte tinha um bebedouro por perto. E consegui manter meu pouco dinheiro para alguma emergência, caso a situação piorasse.

Foi lá que fumei meu primeiro cigarro, sentindo-me adulto, e que tomei umas das minhas primeiras latinhas de cerveja.

Também foi lá, sentado na fileira de viajantes que iam e vinham, que algo me chamou a atenção na televisão pendurada bem diante de mim. Era domingo à noite e passava o Fantástico. 

Estavam anunciando um clip - naquela época ainda faziam isso - de uma nova cantora que estremecia os padrões políticos e sociais. Seu nome, Sinéad O'Connor, era de uma pronúncia esquisita. Irlandesa, revoltada, talentosa. 

E lá assisti o vídeo de 'Nothing campares to you', seu hit que estourava após ela ter regravado do Prince, quando namoraram.

Ela me deixou mudo. Pelo canto com uma doçura amarga. Pela voz. Pela letra. Pela expressão. Pela beleza. Por tudo. Como se tivesse conseguido me transcrever - ou me cantar - através da tela daquele televisor público.





Sinéad esteve ao meu lado até meu pai aparecer e me levar de volta para casa. E desistiram de se livrar de mim, pelo menos através daquele recurso. 

Com o tempo fiquei ainda mais seu fã, colecionando tudo sobre ela, com recortes das revistas que eu comprava ou roubava nas bancas. Até raspei a cabeça por sua causa.

Sinéad se tornou um mito da transição musical e comportamental entre os anos 80 para os 90, rompendo com a tradição estética da beleza, hipnotizando com seu canto e questionando em suas letras os sentidos do amor, das pessoas e da vida. 

Eu e Sinéad fomos tomando nossos rumos. Mas foi dela o primeiro cd que eu comprei quando ganhei meu primeiro salário, sem nem ter aparelho de som para ouvi-la. Era a menina que sofreu maus tratos em casa e com a pobreza e guerra fria em seu país, que cedo ganhou o mundo, onde foi até mensangeira de recados antes de cantar, quando teve uma ascensão meteórica, mas que ao rasgar a foto do Papa num protesto religioso viu sua carreira desabafar. 

A mulher que casou, teve filhos e se separou. Depois virou freira e pediu perdão ao Papa, mas se indignou com a limitação da ação feminina na igreja católica. Então assumiu-se lésbica. Engordou e emagreceu, quase perdeu a voz por causa da depressão e enfrentou problemas com drogas. 

E que agora retorna, linda, amadurecida, esbelta e eternamente musa. 




Em off: Fiquei eufórico quando o amigo e terapeuta Tito Gomes me contou que a conheceu em Londres e que a ajudou em sua recuperação.

Eu também tive minhas reviravoltas e revoltas, mas confesso que, toda vez que a escuto, é como se voltasse a ser aquele menino com o rosto cheio de espinhas, perdido numa rodoviária desconhecida, sentado num banco solitário, com uma pilha de livros na mala, espantado pela liberdade e pensando para onde ir. 

E acho que aprendi a gostar de mim assim.


  


Novo disco e novo visual.