quarta-feira, 28 de maio de 2014

Na aldeia Umutina



Na virada de 2008 para 2009 fui convidado pela FUNAI para levar meu livro infantil, 'O mistério dos livros', para as crianças de uma aldeia indígena no interior mato-grossense, em nome do serviço de socialização e incentivo literário que exerço. Aproveitei a oportunidade para visitar alguns familiares que moram aos arredoes de Cuiabá e que há mais de vinte anos não tinha contato. E passei lá o fim de ano.

Escolhemos uma aldeia intitulada ‘Umutina’, preservada numa área ecológica de Mato Grosso, nos municípios entre Barra dos Bugres e Alto Paraguai, cuja ramificação pertence ao tronco linguístico macro-jê, da linhagem Bororo, somando um número populacional com pouco menos de quinhentos habitantes, conforme a estatística da Associação Indígena regional. 

O nome significa 'índio barbado', uma vez que a espécie normalmente é imberbe, mas aqueles, por terem se misturado geneticamente aos negros e brancos, quebravam o protocolo biológico.

A história de sua colonização é recente, no início do século passado, quando foram injustamente enquadrados como selvagens violentos por lutarem para defender seus domínios contra as invasões civilizatórias. Muitos também foram devastados pelas epidemias decorrentes do homem branco. Mas o mito não condiz com as pessoas amigáveis, tranquilas e extremamente conectadas com a natureza que conheci.

No dia da visita, minha tia e primas me acompanharam. Tia Cida me ajudou a organizar e embalar os livros e brinquedos. Elaine nos conduziu de automóvel ao trajeto. Idaliana fotografou. Sofia e Isabella cederam seus apoios morais, achando tudo muito 'radical'.

Na viagem, seguimos de carro por uma rodovia que desembocou numa estrada de terra que cortava o cerrado, onde pegamos uma balsa com um barqueiro que nos ajudou a chegar até a ilha em que viviam, atravessando o rio Bugre, de água doce e afluente do alto Paraguai, 
chamado por eles de helatino-pó-pare.  

Caminhamos em meio a vegetação, pegando informações com os nativos da região, até finalmente chegarmos à aldeia formada numa clareira, onde nos aguardavam. 

O pajé e sua esposa nos receberam afetuosamente, diante dos olhares discretos e curiosos. Também tivemos a receptividade das crianças que já esperavam na sala da pastoral, e que nada têm de diferente das outras crianças, a não ser a grandeza do seu universo cultural, o que os tornam ainda mais especiais. Criança é criança em qualquer lugar e para elas o mundo é um só.

A princípio estavam reticentes e exibindo certa timidez, mas sempre educados, levantando o dedo quando queriam participar da conversa e sem nunca me interromper. Mas logo que li minhas histórias e comecei a interagir com atividades, todos se soltaram, disputando quem respondia as minhas perguntas para ganharem os presentes. 

 
Fábio Fabrício Fabretti com o jovem índígena Heleno Corezomaé.
/ Foto de Idaliana Bergo /

As novas gerações desde pequenos estudam na própria tribo, depois partem para alguma faculdade, retornando quando se formam, ávidos para atuarem na sua tribo. E assim se mantêm atualizados e ligados aos eternos vínculos.

Como parte de sua alfabetização há a concepção de um livro didático na linguagem umutina, idealizado pelo professor Luciano Ariabo Quezo, da UfsCar, o primeiro graduando indígena a desenvolver um projeto de Iniciação Científica com bolsa da Fundação de Amparo para a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).  

Os mais antigos se dedicam basicamente à construção, caça, pesca e serviços rurais, incluindo a confecção dos artesanatos feitos por homens e mulheres.

A clareira possui postes elétricos e currais para os animais de criação, servindo também de pasto e terreno para a lavoura, além de espaço sagrado onde desempenham suas danças ritualísticas com trajes e canções típicos da sua identidade sócio-cultural. 

Eles têm o hábito de construírem suas tradicionais ocas de madeira e palha, mas também moram em residências feitas de alvenaria, cujo interior possuem computadores, móveis e eletrodomésticos dignos de um verdadeiro lar.

Através do meio virtual até hoje mantenho contato com alguns amigos que lá conheci, e que fazem parte da luta para manterem vivos sua origem, história e tradições, como Maria Alice Cupudunepá, autora prestigiada até no Museu do Índio e que me surpreendeu com seu ativismo educacional, o jovem guerreiro Lennon Corezomaé, que hoje estuda na universidade, e a família Amajunepá, entre outros.

Lá aprendi que o índio brasileiro é mais do que estudamos nas salas de aula, desde os tempos mais antigos sofrendo com o descaso e a exclusão urbana. Mas não entre eles, onde prevalecendo o orgulho de quem são e a autodefesa do seu povo.

Também trouxe comigo uma certeza que me deram, de maneira simples e sincera, diante daquela realidade tão oposta da nossa: de que somos todos iguais, principalmente na força de uma união.