quinta-feira, 29 de maio de 2014

Brega: uma poesia do coração.





Em breve o lançamento da antologia 'Poemas da madrugada', pela Editora Litteris, escrito ao longo da vida por uma autora regional, Fátima Lima, eleita para o projeto literário da Secretaria de Cultura da prefeitura da cidade de Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, com participação de Flávia Dantas.

A indicação para que eu fizesse o prefácio, transcrito logo abaixo, e organizasse os textos, foi do amigo Luiz Pita, que fez toda a produção artística do livro, junto de Juliana Fernandez Acosta, consolidando mais um trabalho em parceria comigo, após o nosso 'Isabelita, a menina dos patins', em que ele e Dalva de Assis ilustraram lindamente.

(Ouça aqui uma das declamações de Fátima Lima) 

O que dizer sobre a poesia brega?

Se o conceito de poesia é a arte escrita que transmite um contexto afetivo, seja qual for o seu objeto artístico, o poema é definidamente uma estrutura específica que contém versos, estrofes, métricas, melodias, rimas ou não. E vale lembrar que a poesia é uma das principais artes mais antigas e tradicionais, na qual a linguagem humana se comunica.

O poema é um texto que obedece ao padrão estético e literário. A poesia vem da alma. O poema entra na alma. A poesia pode ser qualquer coisa, enquanto o poema é uma coisa qualquer.

Temos o poema, como um objeto estilístico, contém existência material e concreta do poeta. Já a poesia tem seu caráter imaterial, subjetivo e transcendente. O poema pensa e a poesia fala.

Se poema é uma obra que apresentada padrões e regras, então a poesia é uma forma especial, dirigida à imaginação e à sensibilidade, transmitindo emoções. O poema é racional. A poesia é visceral. E mais: em todo poema há poesia, mas nem em toda poesia há poema.

No caso de Fátima Lima, autora instintiva e visceral, sua poesia é de ordem crua e nua, o seu arroz com feijão literário, tipicamente o prato nosso de cada dia, feita para os amantes que estão por aí, por todos os lados, observando as estrelas e a lua, chorando nos cinemas ou nos finais das novelas, até quem sabe dançando ou ouvindo a sós uma canção de Roberto Carlos ou Alcione.

A vida e o amor são as mais elaboradas essências da poesia. Sempre foram, destrinchados em temas como solidão, separação, euforia, atração... e gerando a fragrância de uma poesia que deseja expressar exclusivamente os sentimentos, considerados por alguns como 'brega'.

Nos dicionários, a palavra 'brega' é algo conceituado especificamente na música, assentado nos aspectos do romantismo popular, em especial na canção conhecida como 'dor de cotovelo', com arranjos sem grandes elaborações, um substancial apelo emocional, exagero de melodias e letras com rimas fáceis e expressões usuais. Também taxado pela elite como um gênero de 'mau gosto' ou 'cafona'.

Desde os anos 80, uma época considerada por muitos como 'brega' – mas afinal qual passado não é? – essa palavra passou a ser largamente usado na mídia, sempre de maneira pejorativa, rotulando a arte criada sem um 'valor artístico'.

Ainda sem conter uma conceituação correta ou profunda, prefiro entender o termo como aquilo que exprime toda arte feita para todos, sem distinção social, cultural ou temporal, longe do refinamento buscado por muitos e com exageros dramáticos e conteúdo livre ou até ingênuo, agradando a maioria.

Porém, como não há uma definição propriamente dita para o 'brega', o termo se torna um extenso alvo de discussão para os que tentam estabelecer um perfil rígido para ele, que mal se designar numa condição específica.

É justamente essa imprecisão conceitual que carrega o 'brega' e o faz abarcar inúmeros artistas, seja na poesia, na música ou nas artes em geral, onde o sentido – ou falta dele – só reforçam sua imprecisão.

Entre tantos boatos, historicamente, cogita-se que a origem do 'brega', embora ainda desconhecido, pode ser um sufixo da palavra 'nóbrega', que consta no nome da rua Manuel da Nóbrega, uma antiga região de meretrício, há muitas décadas, em Salvador, de onde  provinham canções românticas que embalavam as calorosas noites de amor. Seria lá então o berço do 'brega'?

Seja como for, ele continua ligando os amores e suas dores, rimando os corações sem perdões, vendo os amantes chorando ou suspirando, alastrando mais e mais suas raízes por aí. Ninguém escapa incólume da vida. E nem do brega.

Ainda há quem, dotado de um espírito mais elaborado, prefira utilizar o termo estrangeiro 'kitsch'. O fato é que se a poesia de Fátima Lima é brega ou não, o mais importante é o seu contexto e toda a carga biográfica nela contida.

Fátima merece ser conhecida como emissora de um relato da vida, e lida o som de uma música pop, internacional ou não, lenta e antiga, dotada de nostalgia – exatamente como ela fazia nas rádios em que declamava e nos cds poéticos que gravou – lembrando os velhos LPs das bandas nacionais como o RPM, que trazia na capa a inscrição: 'Para ser ouvido no volume máximo'.

Não só na obra de Fátima, poeta do povo, mas também de consagrados autores como Fernando Pessoa, encontramos citações de que as cartas de amor são ridículas, mas que não seriam cartas de amor se não o fossem. E assim aprendemos um pouco sobre o seu amor de poeta revelado pelo poeta do amor.

Mas fica a critério de cada leitor sentir o seu mais sublime e alcançar a sua interpretação, onde percebemos e sentimos que nem todos podem ser poetas, mas o poeta pode ser todos.

E o amor é para todo mundo.

O INQUILINO

(
Fátima Lima)

Certa noite
alguém bateu em minha porta:
Quem é? perguntei.
É o amor, alguém me respondeu.
O que desejas?
Desejo um coração para amar
e um lugar para ficar...
Você está sozinho?
Não, a saudade veio comigo.
Por que vocês não procuram um hotel?
Já procuramos, mas os quartos 
estão cheios de amor...
Abri a porta 
para meus hóspedes entrarem.
E ficaram comigo por um certo tempo.
Certa manhã
 o amor saiu para comprar jornal
e nunca mais voltou.
Até hoje só a saudade 
mora comigo em seu lugar...