segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Minha história com Hilda Hilst

Fábio Fabrício Fabretti com Hilda Hilst na Casa do Sol.
'Falamos muito sobre fantasmas. E detalhe para o estranho vulto sobre ela.'

Foi no natal de 2002, embora quem me conhece sabe que datas nunca foram o meu forte. Mas, em caso de dúvida, há Ana Kfouri, diretora e atriz, e Olga Bilenki, artista plástica e então esposa do escritor Mora Fuentes, para confirmarem.

Desde jovem devorava tudo de Hilda Hilst. E ao ingressar na faculdade de Letras, em 2000, surpreendi-me, pois mal se falava sobre ela e outros autores nacionais considerados 'malditos'.
  
Aproveitando que frequentava assiduamente o laboratório de informática - wifi sequer sonhava existir - e que acabaria trocando, mesmo tardiamente, minha barulhenta máquina de datilografar por um lento computador modelo 486 - com internet discada -, decidi, por conta própria, saber mais a respeito da autora que tanto me fascinava. 

Descobri que Hilda estava viva, morando em sua Casa do Sol, isolada e doente, no interior de Sampa. Consegui seu endereço e telefone através de um site. E liguei, cheio de ousadia e sem saber o que encontraria. O coração aos sambas. 

Quem atendeu foi Mora Fuentes, um escritor e velho amigo dela. E provisório secretário, já que Hilda não tinha mais condições de se administrar sozinha. E confiava nele para ajudá-la, junto de sua esposa, Olga Bilenki.

Não sei se era comum receberem ligações de leitores. Hilda sempre reclusa, enfrentando problemas financeiros e lutando contra as sequelas de uma doença. Mas Mora foi atencioso comigo e me deixou trocar algumas palavras com ela. 

Ela falava pouco, a princípio. Acho que gostava mais de ouvir. E respondia monossílaba, entrecortada por uma respiração ofegante. Sabia através da imprensa que seu estado era crítico, devido às três isquemias sofridas, e que a deixaram debilitada, embora com uma memória infalível.

Continuei o ritual uma vez por semana, telefonando para dar-lhe um oi. Mora me permitia conversar alguns minutos com ela. E Hilda me contava vagamente sobre sua precária saúde, reclamava de alguma coisa, ria de outras e ainda perguntava da vida aqui fora.

Uma semana antes do fim do ano, liguei para desejar boas festas e dizer que havia escrito uma peça sobre ela, quando, para minha surpresa, foi Hilda quem atendeu. Fiquei tão esfuziante – e ela também, com a ideia do roteiro – que recebi seu inesperado convite para passar lá o Natal.

Não me fiz de rogado. Confirmei com Mora, que respondeu: ‘Ora, se é um convite dela, que assim seja’. Então comprei a passagem e viajei na véspera do dia 25 de dezembro.

Cheguei tarde para a ceia, porque o voo atrasou e a distância do aeroporto para a Casa do Sol era grande. Hilda já havia ido dormir. Jantei com Mora, Olga e o filho deles. Papeamos um pouco. Depois me alojaram num dos quartos de hóspedes, nos fundos da casa, onde, ao fechar a porta, vi uma placa em letras garrafais: ‘É mais tardes que supões’. 

Claro que nem dormi de ansiedade. E amanheci com as galinhas, vasculhando e fotografando tudo ao redor da casa, sempre cercado pelos desconfiados cachorros que chegam a somar uns cem, entre vira-latas e de raça.

Ela vivia de fato em seu reino encantado, sua fortaleza abandonada, seu paraíso solitário, batizado de Casa do Sol, onde nasceu, cresceu, refugiou amigos na ditadura, casou, separou, produziu e até gravou vozes de espíritos e via até extraterrestres. Mas que, na verdade, era a antiga sede que restou da sua fazenda herdada, a onze quilômetros de Campinas.

O casarão tinha um estilo espanhol, cercada por verde e que antes ficava bem no coração de uma floresta, hoje povoado por casarões e chamado Parque Xangrilá – com xis mesmo. Um condomínio residencial construído sobre as terras que ela havia herdado dos pais. E que aos poucos foi vendendo.

Impregnada por uma energia histórica, a Casa do Sol era um  templo-humano e ao mesmo tempo um bordel-canil. Talvez um abrigo onde o Sol e a Lua se refugiavam, em meio àquela construção de telhas altas e sem forro, sustentada por paredes da cor do oriente e retratos de rostos como Freud, Einstein, Kafka, familiares e amigos, quase já todos mortos, mas com olhares vivos sobre nós.

As tantas janelas e a porta principal, todos de madeira, permaneciam sempre abertas, noite e dia, como se ninguém se atrevesse a invadir o sagrado lugar.

No meio da sala principal, com sofás e poltronas gastas, uma lareira de pedras silenciosas, como se esperassem as fogosas mãos da dona para acendê-la e crepitar centelhas da memória.

Dezenas de esculturas e totens se espalhavam pelos cômodos e varanda, parecendo vivos e eternos guardiões. E plantas, em vasos e no chão, das coloridas às sem graça, nascidas aos tufos pelos cantos.

No pátio interno da residência, um jardim de inverno de arquitetura hispânica, onde se tem a sensação de estar num monastério, com um chafariz que vive cheio de vazio.

No quintal dianteiro, um largo corredor de terra, cercado de palmeiras Reais, formando uma passagem ilustre que terminava num esquecido portão de grades enferrujadas e trancado, guardando certo ar monacal e tomado pelo capim.

Ao lado, sombreando uns bancos de pedras, vê-se a lendária figueira, que enfia seus galhos no profundo das nuvens. Uma árvore que é personagem centenária de sua vida e dos seus textos, onde ela diz que realiza pedidos, em noites de lua cheia. 

Não sabia em qual calendário lunar estávamos, mas me sentei na poltrona rochosa, que ela dizia ser o trono do Jô Soares, fechei os olhos e fiz os meus três pedidos. Juro que não lembro com o que pedi, de tão secretos, mas, como me conheço, em geral peço coisas repetitivas. Então, analisado hoje, suponho que tenham sim se realizados.

Ao olhar para cima, o alto das copas era um teto verde, onde o vento mexia as folhas e fazia os galhos roçarem, soando uma misteriosa sinfonia. Segui outro caminho de tijolos esverdeados, coberto de lodo e musgo, cercado por um matagal e que conduziam para lugar nenhum. E novamente o vento, os cachorros, as sombras.

De repente o bando canino se alvoroçou aos atropelos para o interior da sede, numa profusão de latidos, uivos e grunhidos. E eis que, na soleira da porta, surge Hilda Hilst, recebendo um altivo coro de seus cães, que deviam fazer toda manhã aquela espécie de musical matutino, formando uma ensurdecedora orquestra de bichos.

Tal qual uma regente musical ou rainha do seu mundo, ela estendeu os braços de mangas esvoaçantes, conduzindo a algazarra e aos poucos ordenando que parassem, enquanto abaixava os magros braços, sensorialmente, no silêncio que foi se construindo.

Continuei hipnotizado pela cena até que ela sorriu e me acenou para entrar. E nos cumprimentamos. Obedeci a todos seus comandos, igual a um dos seus cães.

Conhecê-la foi mergulhar no mais iluminado e obscuro do ser. Um oceano de mistérios e um deserto de revelações. Enquanto estive ao seu lado, via-me enfeitiçado por aquela magia bem e mal dita.

‘Desculpe não ter esperado você ontem. Durmo cedo por causa dos remédios, mas o meu horário nobre para despertar é por volta das dez da manhã, quando soam os sinos no Olimpo’, brincou, movendo com dificuldade o corpo definhado e falando com a dicção estremecida. ‘Todo santo dia é uma constante briga entre a vida e a morte’, debochou.

Hilda era uma imagem grandiosa de tanta pequenez, forte e frágil, refletida na pele translúcida, nas lagoas dos olhos azuis, nos ralos cabelos de louro medieval. Uma aparição quase que divina. Ou demoníaca. Nunca soube ao certo. Vestia um longo e largo vestido vermelho, lembrando uma bata usada pelas divas dos palcos. Mas ela era mesmo diva das palavras. E me dava a impressão de contemplar uma flor. Flor vermelha. Rosa sangrenta. Rainha do jardim que fenecia.

Elogiei sua roupa. ‘Vermelho é a vida, a paixão, o amor’, ela respondeu com voz fraquinha, mas sorridente. Sentou-se numa bergere marrom, que devia ser a sua preferida, enquanto a cachorrada dominava o sofá maior. Acendeu um Chanceller, com a postura de uma musa épica, e tomou seu cálice de vinho Chalise, a única bebida ainda permitida pelos médicos.

‘Senta aqui pertinho de mim’, pediu, abrigando minha mão na sua. Sentei. E na profundeza do seu olhar celeste, ela parecia saber muito mais do que nós o que acontecia à sua volta. Tinha uma lucidez meio senil. Uma doçura meio amarga. Uma realidade meio sonhadora.

‘Mas que bom que você gosta da minha obra. Ela é especial e só as pessoas especiais podem compreendê-la’, comentou. E começamos a falar sobre tudo. 

Quando o assunto virou o amor - aliás, palavra que sempre brotava dos seus lábios - o brilho azul das pupilas se dilatou: ‘Eu não me apaixono mais. É muito bom se apaixonar. A gente renasce. Mas envelhecemos e vamos deixando de amar, Fábio. E é uma pena. Queria morrer apaixonada, mesmo que fosse por uma pedra.’

Sobre as tristezas da vida, Hilda tragava a fumaça e baforava os sentimentos: ‘O que seria da comédia sem a tragédia? Um tédio.’

Uma hora seu telefone de modelo antigo e vermelho tocou. Ela atendeu. Falou com um amigo que pareceu reclamar quando ela perguntou se ele estava bem. E depois retrucou: ‘Ah, não se preocupe, a gente sempre pensa na morte. É inevitável.’

Quando me ofereceu bebida e neguei, agiu exatamente como aquela dama que tanto escandalizou a sociedade: ‘Não aceita me acompanhar no vinho? Bom... então, foda-se!’

Fez-me uma confissão: ‘Tenho vontade de estudar Física. Já sonhei com Einstein. Ele apareceu e me disse que sou ele no escuro. Mas não saio dizendo isso por aí. Vão pensar que pirei de vez.’

Numa vitrola, colocou o vinil de Ima Sumac, que eu não conhecia. ‘Era minha amiga. Uma cantora de ópera colombiana. Quase não se tem mais registros sobre ela, coitada. Conseguia atingir oitavas maravilhosas, mas parou de cantar um dia, simplesmente, e ficou vinte anos muda. Depois voltou.’

Entre papos, vinhos, fumaças e risadas, ela repentinamente se calou e me estendeu a mão, em sinal de silêncio. Ergueu-se alguns centímetros e voltou a se acomodar. ‘Desculpa, é que preciso peidar. Tenho muito respeito por meus gases.’

Em sua biblioteca particular, rodeada por pilhas e estantes de livros, um paraíso de papel, que cheirava sabedoria. Hilda colocou os óculos, escolhe um livro, espana a poeira e abre numa página amarelada, diante da luz que vaza da persiana aberta: ‘Veja. Estou relendo a história de uma santa. Adoro santos. Queria muito ser uma quando era criança’. E suspira: ‘Amo as mutilações das santas. Adoro ser mártir.’

Em certo momento esparramou seu olhar quase translúcido para fora da janela escancarada, por onde entrava vida, sol, vento e lembranças: ‘Tenho pavor de sair de casa. Veja como está o mundo lá fora. As pessoas me requisitam em tantos lugares e não entendem que, se realmente me querem tem que ser aqui. Este é o meu lugar.’

Quando perguntei sobre Caio Fernando Abreu, riu baixinho: ‘Ele era o oposto alucinado’. E me contou do pacto que fizeram, um dia, se um deles morressem primeiro.

‘Fábio, por que as pessoas falam tanto de mim, agora? Passei mais de cinquenta anos sem ninguém saber quem sou. Que ridículo. Agora me descobriram?’ Quando respondi que para mim ela sempre havia sido famosa, reivindicou: ‘Eu não quero ser famosa. Só quero que me leiam.’

Presenteei-a com um cartãozinho de uma menina abraçada com um elefante, ambos de costas, mostrando que a amizade supera as diferenças. E ela chorou uma lágrima hildiana, discreta, como fazem as pessoas que valorizam o simples e entendem a poesia da vida.

Soube que relutava usar o computador, sem abrir mão de sua milenar máquina de escrever, onde digitava ainda, com ávidos e franzinos dedos pálidos, por horas esparsas, sua mais nova criação, ‘O Koisa’, sobre um caroço de azeitona numa empada.

Só de perto que entendi, naquele recanto clerical, que lá ela era si mesma. Ou se reinventava, longe dos ruídos urbanos e dos sintomas da civilização, dedicando-se ao prazer crucial e inevitável que faz qualquer escritor supera o tempo, a dor e a distância, chamado ‘escrever’.

A gente nunca sabe quando a manhã vira tarde na Casa do Sol, porque as horas por lá são areias invisíveis na ampola do tempo. E quando as primeiras brumas do crepúsculo entraram na casa, resolvi me despedir.

Ela me abraçou e pediu que ficasse até o Ano Novo, porque fariam uma fogueira. Hilda gostava de ser amada. Mas paradoxalmente temia a solidão.

Ana Kfouri estava prestes a chegar, combinado de passar o fim de ano juntas, e o horário do meu voo se aproximava. Então parti, mesmo desejando ficar e pensando que um dia voltaria a vê-la. 

No entanto, soube do seu falecimento, dois anos depois, quando abri o jornal. Antes ainda nos falamos algumas vezes pelo telefone. E Mora me dava notícias dela, ajudando a autorizar o texto teatral que eu havia escrito, inspirada numa história que ela me confidenciou durante a visita.

Mas tenho que confessar: assim que retornei ao Rio, segurando o livro autografado que ganhei dela, entrei em meu escritório e refiz toda a peça. Porque havia cometido um crime. 

A Hilda que havia criado era uma personagem, um mito que nasceu das minhas leituras e pesquisas. E agora, após conhecer a verdadeira escritora, desmitificada e real, entendi o que só quem teve a chance de conhecê-la.

E que, por mais que se tente, não se pode descrever.