sexta-feira, 30 de maio de 2014

Meu tio Bento



Já dizia João Guimarães Rosa: 'O que tenho, lembro'. Verdade. Lembramos de tudo o que um dia tivemos. Pessoas e momentos, principalmente. Às vezes sentimos necessidade de rever alguns fantasmas, sejam bons ou maus. 

Nostalgia é um veneno doce de se tomar. Saudade é uma feridinha que a gente cultiva na alma. Lembrança é um acontecimento que deixou de ser, mas que será sempre. Passado é uma verdade viva disfarçada de morta.

Há coisas que guardamos num cantinho escondido dentro de nós, e que podemos levar anos sem lembrar. De repente volta, ao vivo e a cores, despertando as senhas mais secretas do cofre em nossa mente, podendo levantar ruínas deliciosas que nos sustentam.

Certa vez na casa do amigo Thiago Picchi, enquanto trabalhávamos com afinco em nosso livro 'Sexo, drogas e tralalá', ele começou a tocar sua doce flauta transversal. Um som açucarado que derretia meus ouvidos. Aquela áurea musical que ele levemente materializava, dos nostálgicos acordes do músico Juan José Mosalini - argentino que engrandece o romântico e trágico som do tango - relembrei - ou redescobri? - o quanto a música é o respiro da alma.

Então me recordei de uma pessoa que nunca caiu no meu esquecimento tardio. É que já tive um tio músico. Um sanfoneiro. Um tio tão roceiro quanto Guimarães Rosa e que sabia magistralmente as notas musicais do seu acordeon. Um instrumento que, diante dos meus olhos de menino da cidade, parecia uma cobra encantada que se esticava e encolhia magicamente.

O som festivo era um contrapondo diante de suas mãos brutas do campo. Mãos que ordenhavam vacas, paria bezerros, capinava o mato e acariciava a cabeça dos filhos e sobrinhos. 

Meu tio e seu acordeon por vezes emergem da sepultura que guardam as coisas que perdemos. Quase sempre vivemos de certas lembranças, umas macias e outras dolorosas.

Na infância, passava minhas férias na sua fazenda, de onde nunca se apagou a imagem daquele tio com cara de homem bom, corpo bronco de labuta, pele tostada de sol, mãos calejadas, sorriso paterno e cheiro de verde. 

Após o jantar, sempre num ritual harmonioso e familiar, no qual ele se acomodava sobre um baixo banco de madeira na varanda. A sanfona no colo, cercado pela escuridão noturna e um pequeno público silencioso de filhos e sobrinhos, iluminado apenas por uma lua arredondada, a rala luz do lampião e uma pequena legião de curiosos vaga-lumes.

Sua música debatia-se e voava pela noite, formando um rastro que seguia para as estrelas. Sinfonia bailesca de um homem só, no rítmico vai-e-vem das mil dobras do instrumento minhocoso que hipnotizava meus olhos estatelados, sentado calado ao seu lado, naquela pequena platéia solitária. Meu tio arrancava um som que parecia uma pequena locomotiva viva.

Foi a mesma pessoa que, nas madrugadas povoadas de grilos cantantes e corujas resmungantes, entre outros ruídos que me despertavam assustado, abraçava-me e narrava suas aventuras cheias de coragem e mistérios, com busca pelas minas de ouros e lutas entravadas com os seres monstruosos que vagavam ao redor da fazenda, que para mim era um recanto povoado de criaturas fantásticas. Criaturas que ganhavam vida e cresciam na sua voz, enquanto eu ouvia enlaçado a ele. Meu tio sabia que isso me fascinava. E ao mesmo tempo em que me embalava ao sono, despertava-me também para o desejo da criação.

É isso. Eu já tive um tio com nome de santo. Um tio contador de causos com a mesma destreza que enfeitiçava com sua sanfona mágica, feito um encantador de serpentes. 

O homem que me fez sonhar histórias, apreciar  música e colecionar palavras inventadas. Era um pai. Um homem do campo. Um músico. Um sonhador. Era um historiador. Herói na sua tragédia diária, o meu tio. Quando ele morreu completava muito tempo que não nos víamos. E tudo era diferente. Eu, estudante perdido na cidade grande. Ele, fazendeiro que vivia na distância. Ambos girando em suas órbitas paralelas.

Talvez por isso preferi não vê-lo morto, sem querer que sua última lembrança fosse triste, porque ele me trouxe alegria e imaginação. E isso é um tesouro que ladrão nenhum roubará de nós. 

Algumas pessoas não combinam com a morte. E meu tio é para ser vivo na eternidade, com seu acordeon encantando as pessoas e suas histórias contando mundos. Foi ele que também ajudou a construir o escritor que há em mim.

À noite, quando só e insone, às vezes ouço suas notas e palavras, virando menino novamente. Como sinto falta do meu tio, do seu abraço, da sua sanfona, do seu sorriso, da sua existência. Sentimos falta das coisas que nos pertenceram um dia. 

Sim, mas obrigado Deus. Eu já tive um tio. Um tio que dizia que gostava de mim como filho. Um tio sanfoneiro. Um tio contador de histórias. Um tio que, muito desconfio, era tão especial que não poderia mesmo pertencer a esse mundo, e talvez por isso não esteja mais entre nós.

(Texto escrito em memória ao meu tio Bento Bergo, há alguns anos).